CARTOCINEMA II

DO CENTRO ÀS BORDAS – FRICÇÕES DA VIDA EM FRAMES BRASILIENSES

Brasília já nasceu pelas lentes da câmera. A afirmação, do cineasta Vladimir Carvalho, reforça, como uma sentença, o papel desempenhado pelo cinema (e por outros meios audiovisuais) ao longo da história da nova capital federal. Cenas que remetem à imagem estável da monumentalidade urbana e que são utilizadas até hoje em representações propagandísticas, turísticas e, também, de poder.

O projeto Cartocinema surge da necessidade de compreender a relação entre a paisagem brasiliense e o cinema na trajetória da capital, mas também para questionar o centralismo do centro, presente no cotidiano brasiliense. É a partir da emergência do cinema documental e do cinema engajado no olhar das periferias, e desconfiando da estética da cidade-jardim do poder, que identificamos as verdadeiras fricções da vida em frames[1] brasilienses.

Esse novo olhar sobre a capital é apresentado pelo Projeto Cartocinema II, ao analisar as produções audiovisuais sobre Brasília no período de 1985 a 2005. A segunda edição dá continuidade à investigação iniciada no Cartocinema I (1956-1984), partindo da premissa de que a consolidação da imagem de Brasília pode configurar um novo “tópos fílmico”[2], agora se diferenciando, indo às margens e se dobrando sobre o centro, superando o olhar (só) admirado, pela contundência crítica e mesmo de revolta a partir da abertura a experimentalismos.

As produções ainda se concentram majoritariamente no Plano Piloto, mas um descentramento da criação se pronuncia incisivamente – sobretudo nos longas-metragens e documentários. E mesmo quando o Plano é a paisagem, buscam-se outras experiências que não a grandiosidade oficial do concreto armado.

Importante ressaltar, no período que abrange o Cartocinema II, os investimentos realizados na produção cinematográfica pelo Polo de Cinema e Vídeo Grande Otelo, criado em 1991, na Região Administrativa de Sobradinho. O Polo tinha por função alavancar a produção audiovisual, mas como dispunha de apenas uma edificação (galpão) e carecia de aparato técnico necessário, tornou-se obsoleto. Se até 1997 chegou a realizar mais de 80

[1] Termo equivalente a quadro em um filme; cada quadro por segundo, uma imagem fixa do produto audiovisual.

[2] Referência à imagética recorrente do cinema nacional que se centraliza em três principais paisagens: sertão nordestino, favela carioca e floresta amazônica, elaboração atribuída a Prof. Dr. Caio Augusto Amorim Maciel (UFF).

1 - Termo equivalente a quadro em um filme; cada quadro por segundo, uma imagem fixa do produto audiovisual.
2 - Referência à imagética recorrente do cinema nacional que se centraliza em três principais paisagens: sertão nordestino, favela carioca e floresta amazônica, elaboração atribuída a Prof. Dr. Caio Augusto Amorim Maciel (UFF).

produções, entre 1997 e 2017 foi palco de apenas uma – O outro lado do Paraíso – não cumprindo, assim, seu papel fundamental de dar suporte efetivo aos profissionais de Vídeo e Cinema da capital.


É a partir destas dinâmicas que começa a emergir um cinema feito com poucos recursos técnicos e financeiros, mas fortemente marcado pela paisagem brasiliense descentrada e autocrítica. As produções que tematizam o Distrito Federal começam a buscar os caminhos fora dos monumentos; desejos pela singularidade imagética e a trajeção das histórias íntimas. Assim, friccionam a noção de arquitetura modelo com o frenesi caótico e assimétrico dos anônimos que povoam de vida os espaços além do Plano Piloto, tais como Conterrâneos Velhos de Guerra, de Vladimir Carvalho; Rap, o canto da Ceilândia, de Adirley Queirós; O Cego que gritava luz, de João Batista de Andrade, entre muitos outros.


As linhas de fuga do monumentalismo vão na direção da periferia não mais envergonhada, das margens não mais como “o distante do centro”, mas como uma valorização do ser-periferia e do ser-e-estar-nas-margens por si, como experiência fílmica reveladora de outros sentidos e contextos, inclusive revelando muito do Plano Piloto sem que ele seja o foco, a exemplo do curta Flor Madrugada de Nôga Ribeiro ou o longa Inferno no Gama, de Afonso Brazza, conhecido como “o Rambo do Cerrado”.
As paisagens fílmicas trazem a intimidade das cidades satélites (oficialmente Regiões Administrativas) exigindo uma reeducação do nosso olhar e um acerto de contas com a Capital pelo seu avesso, pelas suas entranhas, pela aparência de suas dobras esquecidas, inexistidas, mas que são onde a vida pulsa e a poesia acontece.


Se em um primeiro momento (1956-1985) a imagem fílmica de Brasília é uma ode à construção da imagem translúcida e plana, salvo exceções, agora, as diferentes produções provocam dissonâncias agudas e estilhaçamentos narrativos. Assim, no Cartocinema II reunimos mais uma coleção de audiovisuais sobre Brasília. Suas sombras, fissuras, construções deterioradas. Imagens desfocadas, sujas, energéticas! A cidade-jardim deslocada pelas cidades-marginais que refazem, de Ceilândia a Planaltina, a experiência-capital.


Prof. Dr. Wallace Pantoja

3 - Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Governo do Distrito Federal (2017).
4 - Augustin Berque (1983) propõe que a formação das paisagens é trajetiva: nem só externa (ambiente), nem só interna (simbolização), nem só material, nem só subjetiva, nem só ativa e nem só receptiva, mas este trajeto entre nós e o mundo que pretende romper com o dualismo sujeito-objeto. A técnica – como uma câmera – é parte de uma exteriorização humana e interiorização do mundo.